1 Miguilim
“De repente lá vinha um homem a
cavalo. Eram dois. Um senhor de fora, o claro de roupa. Miguilim saudou,
pedindo a bênção. O homem trouxe o cavalo cá bem junto. Ele era de óculos,
corado, alto, com um chapéu diferente, mesmo.
- Deus te abençoe, pequenino.
Como é teu nome?
- Miguilim. Eu sou irmão do Dito.
- E o seu irmão Dito é o dono
daqui?
- Não, meu senhor. O Ditinho está
em glória.
O homem esbarrava o avanço do
cavalo, que era zelado, manteúdo, formoso como nenhum outro. Redizia:
- Ah, não sabia, não. Deus o
tenha em sua guarda... Mas que é que há, Miguilim?
Miguilim queria ver se o homem
estava mesmo sorrindo para ele, por isso é que o encarava.
- Por que você aperta os olhos
assim? Você não é limpo de vista? Vamos até lá. Quem é que está em tua casa?
- É Mãe, e os meninos...
Estava Mãe, estava tio Terez,
estavam todos. O senhor alto e claro se apeou. O outro, que vinha com ele, era
um camarada. O senhor perguntava à Mãe muitas coisas do Miguilim. Depois
perguntava a ele mesmo: - Miguilim, espia daí: quantos dedos da minha mão você
está enxergando? E agora?.
ROSA,
João Guimarães. Manuelzão e Miguilim. 9ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1984.
Esta história, com narrador
observador em terceira pessoa, apresenta os acontecimentos da perspectiva de
Miguilim. O fato de o ponto de vista do narrador ter Miguilim como referência,
inclusive espacial, fica explicitado em:
(A)
“O homem
trouxe o cavalo cá bem junto”
(B) “Ele era de óculos,
corado, alto (...)”
(C) “O homem esbarrava o
avanço do cavalo, (....”
(D) “Miguilim queria ver se o
homem estava mesmo sorrindo para ele, (...)”
(E) “Estava Mãe, estava tio
Terez, estavam todos”
Comentário: (A) locução adverbial “cá bem junto” faz referência ao espaço próximo
de Miguilim. O advérbio “cá” indica proximidade (no texto, o lugar de onde o
enunciador emite o discurso). É perceptível que o narrador tem acesso ao mundo
de Miguilim, o que caracteriza esse narrador como onisciente.
“Lembro-me de que certa noite –
eu teria uns quatorze anos, quando muito – encarregaram-me de segurar uma
lâmpada elétrica à cabeceira da mesa de operações, enquanto um médico fazia os
primeiros curativos num pobre-diabo que soldados da Polícia Municipal haviam
“carneado”. (...) Apesar do horror e da náusea, continuei firme onde estava,
talvez pensando assim: se esse caboclo pode aguentar tudo isso sem gemer, por
que não hei de poder ficar segurando esta lâmpada para ajudar o doutor a
costurar esses talhos e salvar essa vida? (...)
Desde que, adulto, comecei a
escrever romances, tem-me animado até hoje a ideia de que o menos que o
escritor pode fazer, numa época de atrocidades e injustiças como a nossa, é
acender a sua lâmpada, fazer luz sobre a realidade de seu mundo, evitando que
sobre ele caia a escuridão, propícia aos ladrões, aos assassinos e aos tiranos.
Sim, segurar a lâmpada, a despeito da náusea e do horror. Se não tivermos uma
lâmpada elétrica, acendamos o nosso toco de vela ou, em último caso, risquemos
fósforos repetidamente, como um sinal de que não desertamos nosso posto.”
VERÍSSIMO,
Érico. Solo de Clarineta. Tomo I. Porto Alegre:
Editora
Globo, 1978.
Neste texto, por meio da metáfora da lâmpada que
ilumina a escuridão, Érico Veríssimo define como uma das funções do escritor e,
por extensão, da literatura,
(A) criar a fantasia.
(B) permitir o sonho.
(C) denunciar o real.
(D) criar o belo.
(E) fugir da náusea.
Comentário:
O locutor defende o engajamento da arte; a expressão do texto “o escritor
pode... fazer luz sobre a realidade de seu mundo” equivale ao que afirma a
alternativa C, pois a criação artística deve estar a serviço de uma causa
social, denunciando, assim, as injustiças.
9
“Narizinho
correu os olhos pela assistência. Não podia haver nada mais curioso.
Besourinhos de fraque e flores na lapela conversavam com baratinhas de mantilha
e miosótis nos cabelos. Abelhas douradas, verdes e azuis, falavam mal das
vespas de cintura fina – achando que era exagero usarem coletes tão apertados.
Sardinhas aos centos criticavam os cuidados excessivos que as borboletas de
toucados de gaze tinham com o pó das suas asas. Mamangavas de ferrões amarrados
para não morderem. E canários cantando, e beija-flores beijando flores, e
camarões camaronando, e caranguejos caranguejando, tudo que é pequenino e não
morde, pequeninando e não mordendo.”
LOBATO,
Monteiro. Reinações de Narizinho. São Paulo: Brasiliense, 1947.
No último período do trecho, há
uma série de verbos no gerúndio que contribuem para caracterizar o ambiente
fantástico descrito. Expressões como “camaronando”, “caranguejando” e
“pequeninando e não mordendo” criam, principalmente, efeitos de
(A) esvaziamento de sentido.
(B) monotonia do ambiente.
(C) estaticidade dos animais.
(D) interrupção dos movimentos.
(E) dinamicidade do cenário.
Comentário: (E)
Uma vez que a forma nominal gerúndio indica uma ação contínua que esteve, está
ou estará em andamento, podemos depreender que o seu uso do gerúndio nos
fragmentos da questão sugere movimento à descrição e, por extensão,
dinamicidade do cenário.
20
O autor da tira
utilizou os princípios de composição de um conhecido movimento artístico para
representar a necessidade de um mesmo observador aprender a considerar,
simultaneamente, diferentes pontos de vista.
Das obras reproduzidas, todas de
autoria do pintor espanhol Pablo Picasso, aquela em cuja composição foi adotado
um procedimento semelhante é:
Correta:
E
Comentário:
Ao mencionar “o tradicional único ponto de vista foi abandonado”, o quadrinho
remete-nos a um dos movimentos artísticos que mais se destacou no século XX: o
Cubismo, corrente estética da qual Pablo Picasso foi um dos iniciadores. O
enunciado alude, especificamente, ao simultaneísmo, que é a fusão de planos
temporais e espaciais distintos, como se o observador pudesse observar os
objetos de vários ângulos simultaneamente. Na alternativa E, Marie-Thérèse apoiada no cotovelo, pode-se observar uma figura
feminina que parece estar tanto de frente quanto de perfil dependendo de como ela
é observada. Há uma multiplicidade de perspectivas que fazem com que olhos e
boca da possível mulher pareçam “fragmentos” de um rosto.
21 Em
1958, a seleção brasileira foi campeã mundial pela primeira vez. O texto foi
extraído da crônica “A alegria de ser brasileiro”, do dramaturgo Nelson
Rodrigues, publicada naquele ano pelo jornal Última Hora.
“Agora, com a chegada da equipe
imortal, as lágrimas rolam. Convenhamos que a seleção as merece. Merece por
tudo: não só pelo futebol, que foi o mais belo que os olhos mortais já
contemplaram, como também pelo seu maravilhoso índice disciplinar. Até este
Campeonato, o brasileiro julgava-se um cafajeste nato e hereditário. Olhava o
inglês e tinha-lhe inveja. Achava o inglês o sujeito mais fino, mais sóbrio, de
uma polidez e de uma cerimônia inenarráveis. E, súbito, há o Mundial. Todo
mundo baixou o sarrafo no Brasil. Suecos, britânicos, alemães, franceses,
checos, russos, davam botinadas em penca. Só o brasileiro se mantinha
ferozmente dentro dos limites rígidos da esportividade. Então, se verificou o
seguinte: o inglês, tal como o concebíamos, não existe. O único inglês que
apareceu no Mundial foi o brasileiro. Por tantos motivos, vamos perder a
vergonha (...), vamos sentar no meio-fio e chorar. Porque é uma alegria ser
brasileiro, amigos.”
Além de destacar a beleza do
futebol brasileiro, Nelson Rodrigues quis dizer que o comportamento dos
jogadores dentro do campo:
(A) foi prejudicial para a equipe
e quase pôs a perder a conquista da copa do mundo.
(B) mostrou que os brasileiros
tinham as mesmas qualidades que admiravam nos europeus, principalmente nos
ingleses.
(C) ressaltou o sentimento de
inferioridade dos jogadores brasileiros em relação aos europeus, o que os impediu
de revidar as agressões sofridas.
(D) mostrou que o choro poderia
aliviar o sentimento de que os europeus eram superiores aos brasileiros.
(E) mostrou que os brasileiros
eram iguais aos europeus, podendo comportar-se como eles, que não respeitavam
os limites da esportividade.
Comentário:
A alternativa correta é a B, e o trecho que comprova a sua afirmação é “... o
inglês, tal como o concebíamos, não existe. O único inglês que apareceu no
Mundial foi o brasileiro”.
23 A
palavra tatuagem é relativamente recente. Toda a gente sabe que foi o navegador
Cook que a introduziu no Ocidente, e esse escrevia tattou, termo da Polinésia
de tatou ou tu tahou, “desenho”.
(...) Desde os mais remotos tempos,
vemo-la a transformar-se: distintivo honorífico entre uns homens, ferrete de ignomínia
entre outros, meio de assustar o adversário para os bretões, marca de uma
classe de selvagens das ilhas marquesas (...) sinal de amor, de desprezo, de
ódio (...). Há três casos de tatuagem no Rio, completamente diversos na sua
significação moral: os negros, os turcos com o fundo religioso e o bando de
meretrizes, dos rufiões e dos humildes, que se marcam por crime ou por
ociosidade..
RIO,
João do. Os Tatuadores. Revista Kosmos. 1904, apud: A alma
encantadora
das ruas, SP: Cia das Letras, 1999.
Com base no texto são feitas as
seguintes afirmações:
I. João do Rio revela como a
tatuagem já estava presente na cidade do Rio de Janeiro, pelo menos desde o
início do século XX, e era mais utilizada por alguns setores da população.
II. A tatuagem, de origem polinésia,
difundiu-se no ocidente com a característica que permanece até hoje: utilização
entre os jovens com função estritamente estética.
III. O texto mostra como a tatuagem é
uma prática que se transforma no tempo e que alcança inúmeros sentidos nos
diversos setores das sociedades e para as diferentes culturas.
Está correto o que se afirma apenas em
(A) I.
(B) II.
(C) III.
(D) I e II.
(E) I e III.
Comentário:
(E) Questão de interpretação de texto. No trecho da crônica, mostra-se que a
tatuagem já estava presente no Rio de Janeiro no início do século XX e era de
uso específico de uma camada da população, assim, I é verdadeira. O texto
afirma ainda que a tatuagem assume um valor cultural diferente, ou seja, é
motivo de honra em um lugar, de discriminação em outros, etc. Portanto, III
também é verdadeira. II não pode ser verdadeira porque não podemos considerar
que a utilização de tatuagens tenha objetivos puramente estéticos e que ocorra
apenas entre os jovens.
30
Só falta o
Senado aprovar o projeto de lei [sobre o uso de termos estrangeiros no Brasil] para
que palavras como shopping center , delivery e drive-through sejam proibidas em
nomes de estabelecimentos e marcas. Engajado nessa valorosa luta contra o
inimigo ianque, que quer fazer área de livre comércio com nosso inculto e belo
idioma, venho sugerir algumas outras medidas que serão de extrema importância
para a preservação da soberania nacional, a saber:
·
Nenhum
cidadão carioca ou gaúcho poderá dizer “Tu vai” em espaços públicos do
território nacional;
.........
·
Nenhum
cidadão paulista poderá dizer “Eu lhe amo” e retirar ou acrescentar o plural em
sentenças como “Me vê um chopps e dois pastel”;
..........
·
Nenhum
dono de borracharia poderá escrever cartaz com a palavra “borracharia” e nenhum
dono de banca de jornal anunciará “Vende-se cigarros”;
..........
·
Nenhum
livro de gramática obrigará os alunos a utilizar colocações pronominais como
“casar-me-ei” ou “ver-se-ão”.
PIZA,
Daniel. Uma proposta imodesta. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 8/04/2001.
No texto acima, o autor:
(A) mostra-se favorável ao teor
da proposta por entender que a língua portuguesa deve ser protegida contra
deturpações de uso.
(B) ironiza o projeto de lei ao
sugerir medidas que inibam determinados usos regionais e socioculturais da
língua.
(C) denuncia o desconhecimento de
regras elementares de concordância verbal e nominal pelo falante brasileiro.
(D) revela-se preconceituoso em
relação a certos registros linguísticos ao propor medidas que os controlem.
(E) defende o ensino rigoroso da
gramática para que todos aprendam a empregar corretamente os pronomes.
Comentário: (B)
Obviamente todas essas recomendações contra os usos socioculturais da língua
são irônicas, tanto pela absurda imposição quanto pela sua impraticabilidade.
Várias são as passagens nas quais se torna evidente o tom irônico do locutor:
“inimigo ianque”, a expressão “só falta”, que denuncia que o locutor é
contrário à proposta referida; a expressão “extrema importância para a
preservação da soberania nacional”, dentre outras.
46
A leitura do
poema Descrição da guerra em Guernica traz à lembrança o famoso quadro de
Picasso.
Entra pela janela
o anjo camponês;
com a terceira luz na mão;
minucioso, habituado
aos interiores de cereal,
aos utensílios que dormem na fuligem;
os seus olhos rurais
não compreendem bem os símbolos
desta colheita: hélices,
motores furiosos;
e estende mais o braço; planta
no ar, como uma árvore
a chama do candeeiro.
(...)
Carlos de
Oliveira in ANDRADE, Eugénio. Antologia Pessoal da Poesia Portuguesa. Porto:
Campo das Letras, 1999.
Uma análise cuidadosa do quadro
permite que se identifiquem as cenas referidas nos trechos do poema.
Podem ser relacionadas ao texto
lido as partes:
Comentário:
(C) As imagens “anjo camponês”, “a terceira luz na mão” e “a chama do candeeiro”,
referidas no poema, são claramente identificáveis no quadrante superior direito
da réplica da tela de Picasso, entre as várias imagens e formas simbólicas
utilizadas pelo pintor para dar concretude ao horror da guerra e ao aspecto
desumano apresentado pelo homem na luta contra seu semelhante. Por tentar
representar todo esse horror, Guernica,
de Pablo Picasso, tornou-se símbolo universal.
56
A crônica muitas
vezes constitui um espaço para reflexão sobre aspectos da sociedade em que
vivemos.
“Eu, na rua, com pressa, e o
menino segurou no meu braço, falou qualquer coisa que não entendi. Fui logo
dizendo que não tinha, certa de que ele estava pedindo dinheiro. Não estava.
Queria saber a hora. Talvez não fosse um Menino De Família, mas também não era
um Menino De Rua. É assim que a gente divide. Menino De Família é aquele
bem-vestido com tênis da moda e camiseta de marca, que usa relógio e a mãe dá
outro se o dele for roubado por um Menino De Rua. Menino De Rua é aquele que
quando a gente passa perto segura a bolsa com força porque pensa que ele é
pivete, trombadinha, ladrão. (...) Na verdade não existem meninos De rua.
Existem meninos NA rua. E toda vez que um menino está NA rua é porque alguém o
botou lá. Os meninos não vão sozinhos aos lugares. Assim como são postos no
mundo, durante muitos anos também são postos onde quer que estejam. Resta ver
quem os põe na rua. E por quê..
COLASSANTI,
Marina. In: Eu sei, mas não devia. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
No terceiro parágrafo em “...
não existem meninos De rua. Existem meninos NA rua.”, a troca de De pelo Na
determina que a relação de sentido entre “menino” e “rua” seja
(A) de localização e não de
qualidade.
(B) de origem e não de posse.
(C) de origem e não de localização.
(D) de qualidade e não de origem.
(E) de posse e não de
localização.
Comentário:
No texto, o fato de estarem na rua é uma circunstância espacial (indica onde
estão), e não essencial (não indica quem
são ou como são). Portanto, a
alternativa correta é a (A), pois é substituída uma atribuição de qualidade (de
rua) por uma circunstância de localização – espaço – (na rua).
Fonte: http://www.joseferreira.com.br/blogs/lingua-portuguesa/enem/questoes-de-lingua-portuguesa-no-enem-2001-gabarito-comentado/
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