sexta-feira, 22 de julho de 2016

Prova ENEM 2002 / Língua Portuguesa - Gabarito






1  Miguilim



“De repente lá vinha um homem a cavalo. Eram dois. Um senhor de fora, o claro de roupa. Miguilim saudou, pedindo a bênção. O homem trouxe o cavalo cá bem junto. Ele era de óculos, corado, alto, com um chapéu diferente, mesmo.

- Deus te abençoe, pequenino. Como é teu nome?

- Miguilim. Eu sou irmão do Dito.

- E o seu irmão Dito é o dono daqui?

- Não, meu senhor. O Ditinho está em glória.

O homem esbarrava o avanço do cavalo, que era zelado, manteúdo, formoso como nenhum outro. Redizia:

- Ah, não sabia, não. Deus o tenha em sua guarda... Mas que é que há, Miguilim?

Miguilim queria ver se o homem estava mesmo sorrindo para ele, por isso é que o encarava.

- Por que você aperta os olhos assim? Você não é limpo de vista? Vamos até lá. Quem é que está em tua casa?

- É Mãe, e os meninos...

Estava Mãe, estava tio Terez, estavam todos. O senhor alto e claro se apeou. O outro, que vinha com ele, era um camarada. O senhor perguntava à Mãe muitas coisas do Miguilim. Depois perguntava a ele mesmo: - Miguilim, espia daí: quantos dedos da minha mão você está enxergando? E agora?.

ROSA, João Guimarães. Manuelzão e Miguilim. 9ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.



Esta história, com narrador observador em terceira pessoa, apresenta os acontecimentos da perspectiva de Miguilim. O fato de o ponto de vista do narrador ter Miguilim como referência, inclusive espacial, fica explicitado em:

(A) “O homem trouxe o cavalo cá bem junto”

(B) “Ele era de óculos, corado, alto (...)”

(C) “O homem esbarrava o avanço do cavalo, (....”

(D) “Miguilim queria ver se o homem estava mesmo sorrindo para ele, (...)”

(E) “Estava Mãe, estava tio Terez, estavam todos”



Comentário: (A) locução adverbial “cá bem junto” faz referência ao espaço próximo de Miguilim. O advérbio “cá” indica proximidade (no texto, o lugar de onde o enunciador emite o discurso). É perceptível que o narrador tem acesso ao mundo de Miguilim, o que caracteriza esse narrador como onisciente. 


7 Érico Veríssimo relata, em suas memórias, um episódio da adolescência que teve influência significativa em sua carreira de escritor.


“Lembro-me de que certa noite – eu teria uns quatorze anos, quando muito – encarregaram-me de segurar uma lâmpada elétrica à cabeceira da mesa de operações, enquanto um médico fazia os primeiros curativos num pobre-diabo que soldados da Polícia Municipal haviam “carneado”. (...) Apesar do horror e da náusea, continuei firme onde estava, talvez pensando assim: se esse caboclo pode aguentar tudo isso sem gemer, por que não hei de poder ficar segurando esta lâmpada para ajudar o doutor a costurar esses talhos e salvar essa vida? (...)

Desde que, adulto, comecei a escrever romances, tem-me animado até hoje a ideia de que o menos que o escritor pode fazer, numa época de atrocidades e injustiças como a nossa, é acender a sua lâmpada, fazer luz sobre a realidade de seu mundo, evitando que sobre ele caia a escuridão, propícia aos ladrões, aos assassinos e aos tiranos. Sim, segurar a lâmpada, a despeito da náusea e do horror. Se não tivermos uma lâmpada elétrica, acendamos o nosso toco de vela ou, em último caso, risquemos fósforos repetidamente, como um sinal de que não desertamos nosso posto.”

VERÍSSIMO, Érico. Solo de Clarineta. Tomo I. Porto Alegre:

Editora Globo, 1978.



Neste texto, por meio da metáfora da lâmpada que ilumina a escuridão, Érico Veríssimo define como uma das funções do escritor e, por extensão, da literatura,



(A) criar a fantasia.

(B) permitir o sonho.

(C) denunciar o real.

(D) criar o belo.

(E) fugir da náusea.



Comentário: O locutor defende o engajamento da arte; a expressão do texto “o escritor pode... fazer luz sobre a realidade de seu mundo” equivale ao que afirma a alternativa C, pois a criação artística deve estar a serviço de uma causa social, denunciando, assim, as injustiças.


 9 “Narizinho correu os olhos pela assistência. Não podia haver nada mais curioso. Besourinhos de fraque e flores na lapela conversavam com baratinhas de mantilha e miosótis nos cabelos. Abelhas douradas, verdes e azuis, falavam mal das vespas de cintura fina – achando que era exagero usarem coletes tão apertados. Sardinhas aos centos criticavam os cuidados excessivos que as borboletas de toucados de gaze tinham com o pó das suas asas. Mamangavas de ferrões amarrados para não morderem. E canários cantando, e beija-flores beijando flores, e camarões camaronando, e caranguejos caranguejando, tudo que é pequenino e não morde, pequeninando e não mordendo.”

LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. São Paulo: Brasiliense, 1947.



No último período do trecho, há uma série de verbos no gerúndio que contribuem para caracterizar o ambiente fantástico descrito. Expressões como “camaronando”, “caranguejando” e “pequeninando e não mordendo” criam, principalmente, efeitos de



(A) esvaziamento de sentido.

(B) monotonia do ambiente.

(C) estaticidade dos animais.

(D) interrupção dos movimentos.

(E) dinamicidade do cenário.



Comentário: (E) Uma vez que a forma nominal gerúndio indica uma ação contínua que esteve, está ou estará em andamento, podemos depreender que o seu uso do gerúndio nos fragmentos da questão sugere movimento à descrição e, por extensão, dinamicidade do cenário.



20 O autor da tira utilizou os princípios de composição de um conhecido movimento artístico para representar a necessidade de um mesmo observador aprender a considerar, simultaneamente, diferentes pontos de vista.


Das obras reproduzidas, todas de autoria do pintor espanhol Pablo Picasso, aquela em cuja composição foi adotado um procedimento semelhante é:


Correta: E
Comentário: Ao mencionar “o tradicional único ponto de vista foi abandonado”, o quadrinho remete-nos a um dos movimentos artísticos que mais se destacou no século XX: o Cubismo, corrente estética da qual Pablo Picasso foi um dos iniciadores. O enunciado alude, especificamente, ao simultaneísmo, que é a fusão de planos temporais e espaciais distintos, como se o observador pudesse observar os objetos de vários ângulos simultaneamente. Na alternativa E, Marie-Thérèse apoiada no cotovelo, pode-se observar uma figura feminina que parece estar tanto de frente quanto de perfil dependendo de como ela é observada. Há uma multiplicidade de perspectivas que fazem com que olhos e boca da possível mulher pareçam “fragmentos” de um rosto.

 21 Em 1958, a seleção brasileira foi campeã mundial pela primeira vez. O texto foi extraído da crônica “A alegria de ser brasileiro”, do dramaturgo Nelson Rodrigues, publicada naquele ano pelo jornal Última Hora.
“Agora, com a chegada da equipe imortal, as lágrimas rolam. Convenhamos que a seleção as merece. Merece por tudo: não só pelo futebol, que foi o mais belo que os olhos mortais já contemplaram, como também pelo seu maravilhoso índice disciplinar. Até este Campeonato, o brasileiro julgava-se um cafajeste nato e hereditário. Olhava o inglês e tinha-lhe inveja. Achava o inglês o sujeito mais fino, mais sóbrio, de uma polidez e de uma cerimônia inenarráveis. E, súbito, há o Mundial. Todo mundo baixou o sarrafo no Brasil. Suecos, britânicos, alemães, franceses, checos, russos, davam botinadas em penca. Só o brasileiro se mantinha ferozmente dentro dos limites rígidos da esportividade. Então, se verificou o seguinte: o inglês, tal como o concebíamos, não existe. O único inglês que apareceu no Mundial foi o brasileiro. Por tantos motivos, vamos perder a vergonha (...), vamos sentar no meio-fio e chorar. Porque é uma alegria ser brasileiro, amigos.”

Além de destacar a beleza do futebol brasileiro, Nelson Rodrigues quis dizer que o comportamento  dos jogadores dentro do campo:

(A) foi prejudicial para a equipe e quase pôs a perder a conquista da copa do mundo.
(B) mostrou que os brasileiros tinham as mesmas qualidades que admiravam nos europeus, principalmente nos ingleses.
(C) ressaltou o sentimento de inferioridade dos jogadores brasileiros em relação aos europeus, o que os impediu de revidar as agressões sofridas.
(D) mostrou que o choro poderia aliviar o sentimento de que os europeus eram superiores aos brasileiros.
(E) mostrou que os brasileiros eram iguais aos europeus, podendo comportar-se como eles, que não respeitavam os limites da esportividade.

Comentário: A alternativa correta é a B, e o trecho que comprova a sua afirmação é “... o inglês, tal como o concebíamos, não existe. O único inglês que apareceu no Mundial foi o brasileiro”.
 23 A palavra tatuagem é relativamente recente. Toda a gente sabe que foi o navegador Cook que a introduziu no Ocidente, e esse escrevia tattou, termo da Polinésia de tatou ou tu tahou, “desenho”.
(...) Desde os mais remotos tempos, vemo-la a transformar-se: distintivo honorífico entre uns homens, ferrete de ignomínia entre outros, meio de assustar o adversário para os bretões, marca de uma classe de selvagens das ilhas marquesas (...) sinal de amor, de desprezo, de ódio (...). Há três casos de tatuagem no Rio, completamente diversos na sua significação moral: os negros, os turcos com o fundo religioso e o bando de meretrizes, dos rufiões e dos humildes, que se marcam por crime ou por ociosidade..
RIO, João do. Os Tatuadores. Revista Kosmos. 1904, apud: A alma
encantadora das ruas, SP: Cia das Letras, 1999.

Com base no texto são feitas as seguintes afirmações:
 I. João do Rio revela como a tatuagem já estava presente na cidade do Rio de Janeiro, pelo menos desde o início do século XX, e era mais utilizada por alguns setores da população.

II. A tatuagem, de origem polinésia, difundiu-se no ocidente com a característica que permanece até hoje: utilização entre os jovens com função estritamente estética.
 III. O texto mostra como a tatuagem é uma prática que se transforma no tempo e que alcança inúmeros sentidos nos diversos setores das sociedades e para as diferentes culturas.
Está correto o que se afirma apenas em
(A) I.
(B) II.
(C) III.
(D) I e II.
(E) I e III.

Comentário: (E) Questão de interpretação de texto. No trecho da crônica, mostra-se que a tatuagem já estava presente no Rio de Janeiro no início do século XX e era de uso específico de uma camada da população, assim, I é verdadeira. O texto afirma ainda que a tatuagem assume um valor cultural diferente, ou seja, é motivo de honra em um lugar, de discriminação em outros, etc. Portanto, III também é verdadeira. II não pode ser verdadeira porque não podemos considerar que a utilização de tatuagens tenha objetivos puramente estéticos e que ocorra apenas entre os jovens.
 30 Só falta o Senado aprovar o projeto de lei [sobre o uso de termos estrangeiros no Brasil] para que palavras como shopping center , delivery e drive-through sejam proibidas em nomes de estabelecimentos e marcas. Engajado nessa valorosa luta contra o inimigo ianque, que quer fazer área de livre comércio com nosso inculto e belo idioma, venho sugerir algumas outras medidas que serão de extrema importância para a preservação da soberania nacional, a saber:

·         Nenhum cidadão carioca ou gaúcho poderá dizer “Tu vai” em espaços públicos do território nacional;
                                                                             .........
·         Nenhum cidadão paulista poderá dizer “Eu lhe amo” e retirar ou acrescentar o plural em sentenças como “Me vê um chopps e dois pastel”;
..........
·         Nenhum dono de borracharia poderá escrever cartaz com a palavra “borracharia” e nenhum dono de banca de jornal anunciará “Vende-se cigarros”;
..........
·         Nenhum livro de gramática obrigará os alunos a utilizar colocações pronominais como “casar-me-ei” ou “ver-se-ão”.
PIZA, Daniel. Uma proposta imodesta. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 8/04/2001.

No texto acima, o autor:
(A) mostra-se favorável ao teor da proposta por entender que a língua portuguesa deve ser protegida contra deturpações de uso.
(B) ironiza o projeto de lei ao sugerir medidas que inibam determinados usos regionais e socioculturais da língua.
(C) denuncia o desconhecimento de regras elementares de concordância verbal e nominal pelo falante brasileiro.
(D) revela-se preconceituoso em relação a certos registros linguísticos ao propor medidas que os controlem.

(E) defende o ensino rigoroso da gramática para que todos aprendam a empregar corretamente os pronomes.
 Comentário: (B) Obviamente todas essas recomendações contra os usos socioculturais da língua são irônicas, tanto pela absurda imposição quanto pela sua impraticabilidade. Várias são as passagens nas quais se torna evidente o tom irônico do locutor: “inimigo ianque”, a expressão “só falta”, que denuncia que o locutor é contrário à proposta referida; a expressão “extrema importância para a preservação da soberania nacional”, dentre outras.

46 A leitura do poema Descrição da guerra em Guernica traz à lembrança o famoso quadro de Picasso.
 Entra pela janela
o anjo camponês;
com a terceira luz na mão;
minucioso, habituado
aos interiores de cereal,
aos utensílios que dormem na fuligem;
os seus olhos rurais
não compreendem bem os símbolos
desta colheita: hélices,
motores furiosos;
e estende mais o braço; planta
no ar, como uma árvore
a chama do candeeiro.
(...)
Carlos de Oliveira in ANDRADE, Eugénio. Antologia Pessoal da Poesia Portuguesa. Porto: Campo das Letras, 1999.
 Uma análise cuidadosa do quadro permite que se identifiquem as cenas referidas nos trechos do poema.



Podem ser relacionadas ao texto lido as partes:
(A) a1, a2, a3          (B) f1, e1, d1           (C) e1, d1, c1             (D) c1, c2, c3           (E) e1, e2, e3
Comentário: (C) As imagens “anjo camponês”, “a terceira luz na mão” e “a chama do candeeiro”, referidas no poema, são claramente identificáveis no quadrante superior direito da réplica da tela de Picasso, entre as várias imagens e formas simbólicas utilizadas pelo pintor para dar concretude ao horror da guerra e ao aspecto desumano apresentado pelo homem na luta contra seu semelhante. Por tentar representar todo esse horror, Guernica, de Pablo Picasso, tornou-se símbolo universal.
56 A crônica muitas vezes constitui um espaço para reflexão sobre aspectos da sociedade em que vivemos.
“Eu, na rua, com pressa, e o menino segurou no meu braço, falou qualquer coisa que não entendi. Fui logo dizendo que não tinha, certa de que ele estava pedindo dinheiro. Não estava. Queria saber a hora. Talvez não fosse um Menino De Família, mas também não era um Menino De Rua. É assim que a gente divide. Menino De Família é aquele bem-vestido com tênis da moda e camiseta de marca, que usa relógio e a mãe dá outro se o dele for roubado por um Menino De Rua. Menino De Rua é aquele que quando a gente passa perto segura a bolsa com força porque pensa que ele é pivete, trombadinha, ladrão. (...) Na verdade não existem meninos De rua. Existem meninos NA rua. E toda vez que um menino está NA rua é porque alguém o botou lá. Os meninos não vão sozinhos aos lugares. Assim como são postos no mundo, durante muitos anos também são postos onde quer que estejam. Resta ver quem os põe na rua. E por quê..
COLASSANTI, Marina. In: Eu sei, mas não devia. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
No terceiro parágrafo em “... não existem meninos De rua. Existem meninos NA rua.”, a troca de De pelo Na determina que a relação de sentido entre “menino” e “rua” seja

(A) de localização e não de qualidade.
(B) de origem e não de posse.
(C) de origem e não de localização.
(D) de qualidade e não de origem.
(E) de posse e não de localização.

Comentário: No texto, o fato de estarem na rua é uma circunstância espacial (indica onde estão), e não essencial (não indica quem são ou como são). Portanto, a alternativa correta é a (A), pois é substituída uma atribuição de qualidade (de rua) por uma circunstância de localização – espaço – (na rua).



Fonte: http://www.joseferreira.com.br/blogs/lingua-portuguesa/enem/questoes-de-lingua-portuguesa-no-enem-2001-gabarito-comentado/









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