Clarisse
Lispector é o principal nome da moderna literatura brasileira. Sua obra
apresenta como principal eixo o questionamento do ser, o “estar-no-mundo”, o
intimismo, a pesquisa do ser humano, resultando no chamado romance
introspectivo.
HISTÓRIA
DE COISA, Clarisse Lispector – exercícios
O telefone pertence ao
mundo das coisas. É um objeto vivo–faço questão de que seja “objecto” e não
“objeto”. O “c” é o osso duro do telefone. Ele é um ser doido. É valsa de
Mefistófeles. A autópsia do telefone dá pedaços de coisas.
Às vezes, quando disco um número, toca,
toca, toca sem parar e ninguém atende: comunico-me pálida com o silêncio de uma
casa oca. Até que não aguento a tensão e, nervosa, de súbito desligo, nós dois
com taquicardia.
O
telefone é insolúvel. O telefone é sempre emergente. As palavras não são
coisas, são espírito. O telefone não fala objectos, fala espírito.
Mas eu duvido da minha própria dúvida–e não
sei mais o que é coisa e o que é eu diante da coisa. Ou se trata de tirania das
palavras? Tomo cuidado para não pensar demais. Faz mal às palavras. Mas o
telefone obedece a uma lei inalterável e a um princípio eterno e dinâmico. Eu
me ajusto à minha incerteza, certa da certeza do telefone.
Apesar de tantas conversas e palavras–o
telefone é solitário. E mantém segredo. Indiscrição? Solitude.
O telefone é uma estrela. Ele se estrela todo
estridente em gritos ao soar de repente em casa. Atendo, digo “Alô”–e ninguém
fala. Fico ouvindo a respiração de quem me ama e não tem coragem de falar
comigo.
E quando o telefone nunca toca? A grande
solidão: eu olho para ele e ele olha para mim. Ambos em estado de alerta.
Até que não aguento mais e disco o número de
um amigo. Para quebrar o silêncio grande.
E quando eu me comunico com o sinal de
comunicação? É um enigma: eu me comunico com um “não”. Quando disco e dá sinal
de ocupado, estou me comunicando com o sinal de comunicação. Com o próprio
enigma, pois estou me comunicando com “não, não, não, não, não, não”. E espero
angustiada que o “não, não, não” se transforme em “sim, sim e sim”. O sinal
abençoado da chamada positiva de repente é: alô? de onde fala?
Eu queria saber se existe o número 777-7777.
Se existe comunico-me com o além.
O telefone é como a girafa: nunca se deita.
E, apesar de ser usual, é como a girafa: inusitado.
Sinto o telefone me esperar quando ele não
estabelece logo uma ligação. Ouço uma respiração contida, contida, contida.
O telefone é um ser infeliz. Ele pode se
desesperar e de repente transmitir uma notícia ruim que pega a gente
desprevenida. Mas quando pode, dá notícia alegre. Eu então rio baixinho.
Não adianta me explicarem como funciona o
telefone. Como é que eu disco um número em casa e outra casa responde? Raio
laser? Não. Astronauta, sim. Como é que na Idade Média e na Renascença as
pessoas se comunicavam?
Na Suiça a gente pede à telefonista para nos
acordar a tal e tal hora. E também tem um serviço ótimo: a gente pergunta uma
pergunta que só uma boa enciclopédia responderia. A telefonista pede para
aguardar um prazo e depois telefona informando.
No Brasil demora meses ou até anos para a
gente conseguir obter um telefone. Em New York um brasileiro pediu à telefonista
para adquirir um telefone com muita urgência. Ela disse que não podia dar com
urgência. O brasileiro desanimado perguntou quando conseguiria. Para seu pasmo,
ela disse: só daqui a três dias.
Não digo o número de meu telefone porque é de
grande segredo.
Meu telefone é vermelho.
Eu sou vermelha.
Tenho que interromper porque o telefone está
tocando.
Questões
1)
O telefone ora aparece como um “objeto”, ora personificado. Transcreva uma
frase em que o telefone seja caracterizado como “objeto” e três em que apareça
personificado.
2)
Transcreva um trecho do conto em que Clarisse Lispector apresente uma de suas
mais comuns preocupações: a dúvida existencial.
3)
Apesar da escritora falar em “tirania das palavras” , há outras formas de
comunicação presente no texto que não utilizem palavras? Em caso positivo,
comente-as.
4)
Há identidade entre a narradora do texto e o telefone? Se há, comente e
justifique com palavras ou frases do
próprio texto.
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