sábado, 14 de dezembro de 2019

HISTÓRIA DE COISA, Conto de Clarisse Lispector - Exercícios



Clarisse Lispector é o principal nome da moderna literatura brasileira. Sua obra apresenta como principal eixo o questionamento do ser, o “estar-no-mundo”, o intimismo, a pesquisa do ser humano, resultando no chamado romance introspectivo.

HISTÓRIA DE COISA, Clarisse Lispector – exercícios

    O telefone pertence ao mundo das coisas. É um objeto vivo–faço questão de que seja “objecto” e não “objeto”. O “c” é o osso duro do telefone. Ele é um ser doido. É valsa de Mefistófeles. A autópsia do telefone dá pedaços de coisas.
   Às vezes, quando disco um número, toca, toca, toca sem parar e ninguém atende: comunico-me pálida com o silêncio de uma casa oca. Até que não aguento a tensão e, nervosa, de súbito desligo, nós dois com taquicardia.
   O telefone é insolúvel. O telefone é sempre emergente. As palavras não são coisas, são espírito. O telefone não fala objectos, fala espírito.
   Mas eu duvido da minha própria dúvida–e não sei mais o que é coisa e o que é eu diante da coisa. Ou se trata de tirania das palavras? Tomo cuidado para não pensar demais. Faz mal às palavras. Mas o telefone obedece a uma lei inalterável e a um princípio eterno e dinâmico. Eu me ajusto à minha incerteza, certa da certeza do telefone.
  Apesar de tantas conversas e palavras–o telefone é solitário. E mantém segredo. Indiscrição? Solitude.
  O telefone é uma estrela. Ele se estrela todo estridente em gritos ao soar de repente em casa. Atendo, digo “Alô”–e ninguém fala. Fico ouvindo a respiração de quem me ama e não tem coragem de falar comigo.
  E quando o telefone nunca toca? A grande solidão: eu olho para ele e ele olha para mim. Ambos em estado de alerta.
  Até que não aguento mais e disco o número de um amigo. Para quebrar o silêncio grande.
  E quando eu me comunico com o sinal de comunicação? É um enigma: eu me comunico com um “não”. Quando disco e dá sinal de ocupado, estou me comunicando com o sinal de comunicação. Com o próprio enigma, pois estou me comunicando com “não, não, não, não, não, não”. E espero angustiada que o “não, não, não” se transforme em “sim, sim e sim”. O sinal abençoado da chamada positiva de repente é: alô? de onde fala?
  Eu queria saber se existe o número 777-7777. Se existe comunico-me com o além.
  O telefone é como a girafa: nunca se deita. E, apesar de ser usual, é como a girafa: inusitado.
  Sinto o telefone me esperar quando ele não estabelece logo uma ligação. Ouço uma respiração contida, contida, contida.
  O telefone é um ser infeliz. Ele pode se desesperar e de repente transmitir uma notícia ruim que pega a gente desprevenida. Mas quando pode, dá notícia alegre. Eu então rio baixinho.
  Não adianta me explicarem como funciona o telefone. Como é que eu disco um número em casa e outra casa responde? Raio laser? Não. Astronauta, sim. Como é que na Idade Média e na Renascença as pessoas se comunicavam?
  Na Suiça a gente pede à telefonista para nos acordar a tal e tal hora. E também tem um serviço ótimo: a gente pergunta uma pergunta que só uma boa enciclopédia responderia. A telefonista pede para aguardar um prazo e depois telefona informando.
  No Brasil demora meses ou até anos para a gente conseguir obter um telefone. Em New York um brasileiro pediu à telefonista para adquirir um telefone com muita urgência. Ela disse que não podia dar com urgência. O brasileiro desanimado perguntou quando conseguiria. Para seu pasmo, ela disse: só daqui a três dias.
  Não digo o número de meu telefone porque é de grande segredo.
  Meu telefone é vermelho.
  Eu sou vermelha.
  Tenho que interromper porque o telefone está tocando. 


Questões

1) O telefone ora aparece como um “objeto”, ora personificado. Transcreva uma frase em que o telefone seja caracterizado como “objeto” e três em que apareça personificado.
2) Transcreva um trecho do conto em que Clarisse Lispector apresente uma de suas mais comuns preocupações: a dúvida existencial.
3) Apesar da escritora falar em “tirania das palavras” , há outras formas de comunicação presente no texto que não utilizem palavras? Em caso positivo, comente-as.
4) Há identidade entre a narradora do texto e o telefone? Se há, comente e justifique com palavras  ou frases do próprio texto.

Nenhum comentário:

Postar um comentário