O fragmento que vamos ler é um dos momentos
dramáticos da narrativa. Sérgio e Franco - o pior aluno do internato - espalham
um dia grande quantidade de cacos de garrafas na piscina do colégio, onde se
banhavam todos os meninos. À noite, repensando seus atos , Sérgio arrepende-se.
TEXTO I
O Ateneu
Raul Pompéia
Depois das horas
do serão de estudo, quando se retiravam os estudantes para os dormitórios,
fiquei com o Franco a trabalhar. Tive que suspender, ao fim de quatro páginas.
Devorava-me o remorso como uma febre; aterrava-me a ideia do banho na manhã
seguinte, os rapazes atirando-se à vingança pérfida, a água toldada de rubro.
Impossível fazer mais uma linha. Deixei o companheiro e fugi para o salão dos
médios.
A excitação
recrudesceu; eu rolava na cama sobre um tormento de lascas cortantes. Que
fazer? Denunciar o Franco de madrugada? Correr, às escuras, e abrir o
escoadouro ao tanque? Prevenir aos colegas pedindo que espalhassem? A
controvérsia avultava-me no crânio como uma inchação de meninges. Dar-se-ia
caso que Franco, possuído de arrependimento, fosse apresentar cedinho aos
inspetores a delação do próprio feito? Cheguei a tentar o engodo da consciência
com a ponderação de que talvez não saltassem ao tanque muitos de uma vez, e o
primeiro ferido salvaria os outros. Mas a febre vencia, com a perspectivado
sangue. Dez, vinte, trinta rapazes, à borda, gemendo, extraindo dificilmente da
carne as lascas encravadas! E eu, cúmplice, que o permitira, e maior culpado,
que não me cegavas a razão, em suma, de justa desforra.
Ergui-me da cama,
e descalço nas tábuas frias, para ver se me acalmava o mal-estar, errei pelos
salões adormecidos.
Os colegas, tranquilos,
na linha dos leitos, afundavam a face nas almofadas, palejante da anemia de um
repouso sem sonhos. Alguns afetavam um esboço comovedor de sorriso ao lábio;
alguns, a expressão desanimada dos falecidos, boca entreaberta, pálpebras
entrecerradas, mostrando dentro a ternura embaciada da morte. De espaço a
espaço, os lençóis alvos ondeavam do hausto mais forte do peito, aliviando-se
por um desses longos suspiros da adolescência, gerados, no dormir da vigília
inconsciente do coração. Os menores, mais crianças, conservavam uma das mãos ao
peito, outra a pender da cama, guardando no abandono do descanso uma atitude
ideal de voo. Os mais velhos, contorcidos no espasmo de aspirações precoces,
vergavam a cabeça e envolviam o travesseiro num enlace de carícias. O ar fora
chegava pelas janelas abertas, fresco, temperado da exalação noturna das
árvores; ouvia-se o grito compassado de um sapo, martelando os segundos, as
horas, a pancadas de tanoeiro; outros e outros, mais longe. O gás, frouxamente,
nas arandelas de vidro fosco, bracejando dos balões de asa de mosca,
dispersava-se igual sobre as camas, doçura dispersa de um olhar de mãe.
Que venturosa
segurança naquele museu de sono! E amanhã, pobres colegas! o banho, a volta,
pés ensanguentados, listrando de vestígios vermelhos o caminho!
Voltei ao meu
salão. Tirei da gaveta a imagem de Santa rosália; beijei-a com lágrimas, pedi
conselho como um filho. A inquietação não passava. Atravessei ainda os
dormitórios, devagarinho, que me não ouvisse o Margal, acomodado num biombo a
um dos ângulos do salão azul. Uma crepitação dos ossos do tornozelo esteve a
ponto de me comprometer. Dentro do biombo, tossiram; parei um momento; curou-se
a tosse; prossegui.
Questões:
1) “... eu rolava na cama sobre um tormento de
lascas cortantes.” Existe um dado na memória de Sérgio adulto - o narrador –
que o leva a empregar a expressão em destaque. De quedado se trata?
2) Identifique as linhas em que o narrador
levanta hipóteses que buscam suavizar seu sentimento de culpa.
3) entre a cena descrita no quarto parágrafo e o
remorso da personagem, ocorre uma relação metafórica, hiperbólica, antitética
ou eufemística? Justifique sua resposta.
4) Identifique as figuras de estilo que ocorrem
nas seguintes passagens:
a) “Devora-me
o remorso como uma febre...”
b) “...
a água toldada de rubro.”
c) “...
martelando os segundos...”
d) “O
gás [...] doçura dispersa de um olhar de mãe.”
5) O
grande número de figuras revela interpretação objetiva ou subjetiva da
realidade? Justifique.
TEXTO II
(U.F.Fluminense) Texto para as questões 6 a 9.
“Vais
encontrar o mundo, disse-me meu pai, à porta do Ateneu. Coragem para a luta.” Bastante
experimentei depois a verdade deste aviso, que me despia, num gesto, das
ilusões de criança educada exoticamente na estufa de carinho que é o regime do
amor doméstico, diferente do que se encontra fora, tão diferente, que parece o
poema dos cuidados maternos um artifício sentimental, com a vantagem única de
fazer mais sensível a criatura à impressão rude do primeiro ensinamento,
têmpera brusca da vitalidade na influência de um novo clima rigoroso.
Lembramo-nos, entretanto, com saudade hipócrita, dos felizes tempos; como se a
mesma incerteza de hoje, sob outro aspecto, não nos houvesse perseguido outrora
e não viesse de longe a enfiada das decepções que nos ultrajam.
Eufemismo,
os felizes tempos, eufemismo apenas, igual aos outros que nos alimentam, a
saudade dos dias que correram como melhores. Bem considerando, a atualidade é a
mesma em todas as datas. Feita a compensação dos desejos que variam, das
aspirações que se transformam, alentadas perpetuamente do mesmo ardor, sobre a
mesma base fantástica de esperanças, a atualidade é uma. Sob a coloração
cambiante das horas, um pouco de ouro mais pela manhã, um pouco mais de púrpura
ao crepúsculo – a paisagem é a mesma de cada lado beirando a estrada da vida.
Eu tinha onze anos.
Eu tinha onze anos.
6)
Sobre o
texto de Raul
Pompéia, NÃO podemos
afirmar que:
a) o
ambiente familiar da
infância aparentemente protege
a criança do mundo.
b) a entrada no
Ateneu marca o fim de uma etapa.
c) o zelo familiar suaviza a rude impressão do contato com o mundo.
d) o
tempo vivido no
Ateneu não é,
em essência, diferente das demais fases da vida.
e) todas as fases da
vida são substancialmente semelhantes.
7) A estética
realista-naturalista se caracteriza no texto:
a) pela
louvação da infância
e das memórias
como forma de reconstrução do real idealizado.
b) pela temática voltada
para as classes sociais desfavorecidas.
c) pela linguagem simples
adotada como forma de reprodução da fala do protagonista.
d) pela escolha de um
narrador de primeira pessoa que reforça a verossimilhança do narrado.
8) Só não podemos
dizer que o texto:
a) apresenta uma visão melancólica e dolorosa
sobre a vida
b) destrói a ingênua
ilusão romântica de temos felizes passados.
c) sofre influência
da estética impressionista vigente no final do século XIX.
d) Estabelece com o
leitor um pacto de cumplicidade através da utilização da primeira pessoa do
plural
e) inaugura uma
temática intimista precursora da narrativa proposta pela Semana de 22.
9) a palavra que não
pode substituir no texto rude (linha 13) é:
a) rústica
b) áspera
c) severa
d) rigorosa
e) brusca
GABARITO:
TEXTO I
1) O narrador, narrando em seu presente de adulto,
lembra-se dos cacos de vidro da piscina.
2) Linhas 11 a 15 (“Cheguei a tentar o engodo da
consciência... os outros.”)
3) Ocorre uma antítese. A memória agitada de
Sérgio contrapõe-se o cenário tranquilo dos jovens dormindo.
4) a. personificação
e comparação.
b. hipérbole e
metonímia ( a cor pela substância – sangue)
c. metáfora
d. metáfora
5) Subjetiva. As
figuras, antes de se tornarem clichês, decorrem de associações de natureza subjetiva.
TEXTO II
6) d
7) d
8) e
9) e
REFERÊNCIAS
Língua e Literatura, Franco e Faraco