sábado, 14 de dezembro de 2019

O Ateneu, Raul Pompéia - exercícios


   


O fragmento que vamos ler é um dos momentos dramáticos da narrativa. Sérgio e Franco - o pior aluno do internato - espalham um dia grande quantidade de cacos de garrafas na piscina do colégio, onde se banhavam todos os meninos. À noite, repensando seus atos , Sérgio arrepende-se.

Realismo/ Naturalismo



TEXTO I
O Ateneu
                 Raul Pompéia

   Depois das horas do serão de estudo, quando se retiravam os estudantes para os dormitórios, fiquei com o Franco a trabalhar. Tive que suspender, ao fim de quatro páginas. Devorava-me o remorso como uma febre; aterrava-me a ideia do banho na manhã seguinte, os rapazes atirando-se à vingança pérfida, a água toldada de rubro. Impossível fazer mais uma linha. Deixei o companheiro e fugi para o salão dos médios.
    A excitação recrudesceu; eu rolava na cama sobre um tormento de lascas cortantes. Que fazer? Denunciar o Franco de madrugada? Correr, às escuras, e abrir o escoadouro ao tanque? Prevenir aos colegas pedindo que espalhassem? A controvérsia avultava-me no crânio como uma inchação de meninges. Dar-se-ia caso que Franco, possuído de arrependimento, fosse apresentar cedinho aos inspetores a delação do próprio feito? Cheguei a tentar o engodo da consciência com a ponderação de que talvez não saltassem ao tanque muitos de uma vez, e o primeiro ferido salvaria os outros. Mas a febre vencia, com a perspectivado sangue. Dez, vinte, trinta rapazes, à borda, gemendo, extraindo dificilmente da carne as lascas encravadas! E eu, cúmplice, que o permitira, e maior culpado, que não me cegavas a razão, em suma, de justa desforra.
    Ergui-me da cama, e descalço nas tábuas frias, para ver se me acalmava o mal-estar, errei pelos salões adormecidos.
    Os colegas, tranquilos, na linha dos leitos, afundavam a face nas almofadas, palejante da anemia de um repouso sem sonhos. Alguns afetavam um esboço comovedor de sorriso ao lábio; alguns, a expressão desanimada dos falecidos, boca entreaberta, pálpebras entrecerradas, mostrando dentro a ternura embaciada da morte. De espaço a espaço, os lençóis alvos ondeavam do hausto mais forte do peito, aliviando-se por um desses longos suspiros da adolescência, gerados, no dormir da vigília inconsciente do coração. Os menores, mais crianças, conservavam uma das mãos ao peito, outra a pender da cama, guardando no abandono do descanso uma atitude ideal de voo. Os mais velhos, contorcidos no espasmo de aspirações precoces, vergavam a cabeça e envolviam o travesseiro num enlace de carícias. O ar fora chegava pelas janelas abertas, fresco, temperado da exalação noturna das árvores; ouvia-se o grito compassado de um sapo, martelando os segundos, as horas, a pancadas de tanoeiro; outros e outros, mais longe. O gás, frouxamente, nas arandelas de vidro fosco, bracejando dos balões de asa de mosca, dispersava-se igual sobre as camas, doçura dispersa de um olhar de mãe.
    Que venturosa segurança naquele museu de sono! E amanhã, pobres colegas! o banho, a volta, pés ensanguentados, listrando de vestígios vermelhos o caminho!
    Voltei ao meu salão. Tirei da gaveta a imagem de Santa rosália; beijei-a com lágrimas, pedi conselho como um filho. A inquietação não passava. Atravessei ainda os dormitórios, devagarinho, que me não ouvisse o Margal, acomodado num biombo a um dos ângulos do salão azul. Uma crepitação dos ossos do tornozelo esteve a ponto de me comprometer. Dentro do biombo, tossiram; parei um momento; curou-se a tosse; prossegui.



Questões:

1) “... eu rolava na cama sobre um tormento de lascas cortantes.” Existe um dado na memória de Sérgio adulto - o narrador – que o leva a empregar a expressão em destaque. De quedado se trata?
2) Identifique as linhas em que o narrador levanta hipóteses que buscam suavizar seu sentimento de culpa.
3) entre a cena descrita no quarto parágrafo e o remorso da personagem, ocorre uma relação metafórica, hiperbólica, antitética ou eufemística? Justifique sua resposta.
4) Identifique as figuras de estilo que ocorrem nas seguintes passagens:

a)      “Devora-me o remorso como uma febre...”
b)      “... a água toldada de rubro.” 
c)      “... martelando os segundos...”
d)      “O gás [...] doçura dispersa de um olhar de mãe.” 


5) O grande número de figuras revela interpretação objetiva ou subjetiva da realidade? Justifique.





TEXTO II

 (U.F.Fluminense) Texto para as questões 6 a 9.


    “Vais encontrar o mundo, disse-me meu pai, à porta do Ateneu. Coragem para a luta.” Bastante experimentei depois a verdade deste aviso, que me despia, num gesto, das ilusões de criança educada exoticamente na estufa de carinho que é o regime do amor doméstico, diferente do que se encontra fora, tão diferente, que parece o poema dos cuidados maternos um artifício sentimental, com a vantagem única de fazer mais sensível a criatura à impressão rude do primeiro ensinamento, têmpera brusca da vitalidade na influência de um novo clima rigoroso. Lembramo-nos, entretanto, com saudade hipócrita, dos felizes tempos; como se a mesma incerteza de hoje, sob outro aspecto, não nos houvesse perseguido outrora e não viesse de longe a enfiada das decepções que nos ultrajam.

    Eufemismo, os felizes tempos, eufemismo apenas, igual aos outros que nos alimentam, a saudade dos dias que correram como melhores. Bem considerando, a atualidade é a mesma em todas as datas. Feita a compensação dos desejos que variam, das aspirações que se transformam, alentadas perpetuamente do mesmo ardor, sobre a mesma base fantástica de esperanças, a atualidade é uma. Sob a coloração cambiante das horas, um pouco de ouro mais pela manhã, um pouco mais de púrpura ao crepúsculo – a paisagem é a mesma de cada lado beirando a estrada da vida.
    Eu tinha onze anos.  


6) Sobre  o  texto  de  Raul  Pompéia,  NÃO  podemos  afirmar que:
a)  o  ambiente  familiar  da  infância  aparentemente  protege  a criança do mundo.
b) a entrada no Ateneu marca o fim de uma etapa.
c) o zelo  familiar suaviza a rude  impressão do contato com  o mundo.
d)  o  tempo  vivido  no  Ateneu  não  é,  em  essência,  diferente das demais fases da vida.
e) todas as fases da vida são substancialmente semelhantes.

7) A estética realista-naturalista se caracteriza no texto:

a)  pela  louvação  da  infância  e  das  memórias  como  forma  de reconstrução do real idealizado.
b) pela temática voltada para as classes sociais desfavorecidas.
c) pela linguagem simples adotada como forma de reprodução da fala do protagonista.
d) pela escolha de um narrador de primeira pessoa que reforça a verossimilhança do narrado.


8) Só não podemos dizer que o texto:

a)  apresenta uma visão melancólica e dolorosa sobre a vida
b) destrói a ingênua ilusão romântica de temos felizes passados.
c) sofre influência da estética impressionista vigente no final do século XIX.
d) Estabelece com o leitor um pacto de cumplicidade através da utilização da primeira pessoa do plural
e) inaugura uma temática intimista precursora da narrativa proposta pela Semana de 22.

9) a palavra que não pode substituir no texto rude (linha 13) é:

a) rústica
b) áspera
c) severa
d) rigorosa
e) brusca
 

 

   
 


GABARITO:

TEXTO I 
1) O narrador, narrando em seu presente de adulto, lembra-se dos cacos de vidro da piscina.
2) Linhas 11 a 15 (“Cheguei a tentar o engodo da consciência... os outros.”)
3) Ocorre uma antítese. A memória agitada de Sérgio contrapõe-se o cenário tranquilo dos jovens dormindo.
4) a. personificação e comparação.
b. hipérbole e metonímia ( a cor pela substância – sangue)
c. metáfora
d. metáfora

5) Subjetiva. As figuras, antes de se tornarem clichês, decorrem de associações de  natureza subjetiva.

TEXTO II
6) d
7) d
8) e
9) e




REFERÊNCIAS
Língua e Literatura, Franco e Faraco